terça-feira, 18 de maio de 2010

Tempos de marmita

Em 1980 ingressei na UDF para estudar Economia. Vinha do CEUB, onde tinha abandonado meu curso de Letras. Nessa época trabalhava como escriturário no ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direito Autoral. Toda manhã, sob chuva ou sol, atravessava aquele terreno onde hoje está o CONSEI, e pegava um ônibus lotadão na parada da QE 34, via W3, saltando na parada que, hoje, serve aos frequentadores do Pátio Brasil. O ECAD funcionava num Edifício do Setor Comercial Sul e minha jornada de trabalho ia das 8 às 12 e das 14 às 18h. Foram tempos de vacas magras, muito trabalho, pouca grana, salário minguado, era realmente o começo da década perdida. Como saía muito cedo pra o trabalho e raramente tinha grana para comer em restaurante, levava o rango numa marmitazinha de alumínio, quadradinha, que eu ajeitava na bolsa de couro que usava, meio riponga, e que continha também meu material da faculdade (cadernos, canetas, apostilas). O horário de almoço era uma espécie de festa, pois abríamos, todos os funcionários do ECAD, as marmitas e constatávamos a oferta diversificada de “misturas”: um trazia lingüiça; fulana, carne assada, sicrano do departamento de pessoal trouxe frango, enfim, a gente acabava transformando tudo numa espécie de grande feira do troca: te dou um bife por essa coxa aí. Me dá um pouco da batata que te dou um bocado da cenoura. Tempos remotos. O mais triste era abrir a marmita e perceber que aquela batata frita, tão bonita pela manhã, estava mais murcha que os lábios da Dercy Gonçalves. Quando saía o pagamento, podia me dar ao luxo de comer algo melhorzinho. Nessa época, havia a Casas da Banha, logo em frente ao Setor Comercial, no subsolo do que é, hoje, o Venâncio/Pátio Brasil. Tinha um restaurante por lá, fechado com vidro, ar condicionado, com uma oferta de pratos mais “aprumadinhos” que os pê-efes que ás vezes engolia ali por perto. Mas isso era evento isolado na vidazinha arrochada daquele início de década. Saía do ECAD às 18h e ia a pé para a UDF, onde estudava até as 22h e 45m e, depois de enfrentar o mesmo ônibus lotadão da manhã, chegava em casa por volta da meia-noite. Certa vez, cansadaço, sentado no ultimo banco do coletivo, justamente aquele banco que se expõe ao corredor, com uma penca de livros no colo, caí no sono. No viaduto perto da Octogonal, naquela curva fechada em direção ao SIA, um Puma GT resolveu quebrar e assustar o motorista do ônibus. Quando dei por mim, estava lá na frente, perto da roleta e do cobrador, os livros espalhados pelo chão. Para piorar a situação, minha bolsa de couro estava aberta e a minha marmita resolveu fazer-se em duas, tampa para um lado, recipiente para o outro, embaixo dos bancos. Não sei se engolia a vergonha ou se cuspia minha raiva. O fato é que cheguei, como sempre, com muita fome em casa. Minha mãe e minha vó se revezavam à minha espera, para esquentar um rango. Meia noite e eu traçando um belo de um prato de feijão com arroz, antes de capotar na cama e apagar até que o sol tornasse a nascer. Imagine essa jornada de segunda a sexta-feira. Por ora, a lembrança dessa música do Guilherme Arantes, que se me passou numa manhã nublada, quando ia para o trabalho, naqueles 1980.


A cidade e a neblina (Guilherme Arantes)
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http://www.youtube.com/watch?v=lMddnAEI1iU

Um comentário:

  1. Hoje, com o coração em festa pelo seu aniversário, mesmo não estando por perto não poderia ter lido estória melhor que essa que retrata sua vida, ainda tão jovem. Quase posso me lembrar dessa bolsa riponga e de Ti tão introspectivo quanto marcante.

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