terça-feira, 11 de maio de 2010

A Belíndia era a Bélgica e só

A censura era um bicho muito escroto, como diriam os Titãs, e que habitou, sem muito consenso, as terras brasilis durante muitos anos. Esse bichinho, que se alimenta do nosso medo e sobrevive às custas de fuzis e baionetas, tem uma predileção por elementos da arte: música, pintura, teatro, literatura. Gosta de devorar qualquer coisinha que interfira na ordem das coisas e, por essas e por outras, a gente tinha sempre que enviar para avaliação desse bichinho dos diabos as nossas letrinhas musicais. Quando participei de um festival de música, em 1900 e lá vai rapadura, convidei uma amiga, a Tania, para declamar alguns dos seus versos. Inscrivi uma música que eu adorava cantar na época, "Acroamático", e que a galera também parecia curtir muito. A música tem três estrofes que descrevem um mundo de privilégios (A Bélgica), um mundo de desvalidos (a Índia) e o mundo daqueles que sustentam essa situação (o Leviatã nacional). Combinei com a Tania que, entre uma estrofe e outra, ela declamaria seus versos de protesto. Toda a performance foi pensada para ser de confronto, tanto é que, por causa do bichinho escroto da censura, a letra encaminhada aos jurados era diferente daquela que resolvi cantar na hora. O pessoal da Dona Solange (a chefe do meigo serviço de censura) rejeitara em minha música alguns termos nao condizentes com a moral e os bons costumes. Durante a apresentação, como convém a qualquer bom festival, começaram a nos lançar vaias, que foram aumentando, aumentando, e antes que terminássemos ninguem mais conseguia ouvir o que eu cantava. Pra nosso azar, nao eram apenas vaias o que nos lançavam, eram papéis, clipes, avioezinhos de papel, desprezo, achincalhes e outras cositas mas. No final de tudo, a notícia vinda do corpo de jurados: a música estava desclassificada. Lembro que recebi a notícia no bar do clube, enquanto aguardava o resultado do festival. Foda-se, pensei, desce mais uma, pedi ao garçom. A Tania bebeu a cerveja comigo.
Segue "Acroamático", letra logo abaixo:

Acroamático
(Léo)

Eles não tinham noção de nação
a Belíndia era a Bélgica e só.
Tinham toda gasolina
e toda cocaína de Ponta Porã.
Tudo era válido
tudo era fálico
tudo era ácido e pó
... no planalto Central. (repete)

Eles dormiam na Índia
no beco das putas
das bixas, do bar.
Eles viviam das sobras
do grande banquete parlamentar.
Tudo era fétido
tudo era mórbido
tudo era sobreviver
... no planalto Central (repete)

Eles se viam en passant
entre goles de Dimple
e vidro fumê.
Dormiam sobre o capacho
d'el Rey
no pálácio em busca de mel
Tudo era fácil
tudo era fóssil
tudo era ócio
o ideal do planalto central?
do planalto Central do País?

(música incidental:
Desperta o gigante brasileiro
desperta e proclama ao mundo inteiro
num brado de orgulho e confiança
nasceu a linda Brasília
a capital da esperança...)


do país.

Atualíssima, né?

Um comentário:

  1. Bota atual nisso! Ei Léo, e Godofredo o seu super-herói? e Cajuína? Nossa, há quanto tempo, não? Taí, gostei do seu Mp3! Parabéns e um bjão saudoso!

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