terça-feira, 18 de maio de 2010

Música para acampamentos

Eu sempre fui um bicho muito esquisito, reconheço. Nasci velho e agora sinto que rejuvenesço, ou me engano? Será que sou o verdadeiro Benjamin Button? Muito além da referência cinematográfica, o que quero dizer é que, lá pelos tempos pré-históricos de minha adolescência, nunca curti essa onda de acampamento. Quando saiu o álbum da Legião, “Música para acampamento” eu refleti que, na vera, na vera, eu nunca fui de gostar da história de pegar uma barraca, juntar uns badulaques e ir pra beira de um poço azul, ficar cheio de mumunhas e corumbar a tarde toda. Nem pensar. Conto nos dedos da mão do Lula o número de vezes que encarei essa história de ir pro mato, beber umas, fumar outras e procurar disco voador entre uns pegas e outros. Minha turma vivia por Pirenópolis, Goiás Velho, Alto Paraíso, nômades felizes sorrindo para o tempo, e eu sempre preferi me agarrar a um bom livro, viajar em um bolachão duplo do Gênesis...ah, The Lamb lies down on Broadway ou delirar com Yes, Emerson, Lake & Palmer, putz, quase furei o Close to the edge e o Tarkus. Que cachoeira, que nada. Era um velho, eu sei, sou uma múmia. Mas uma vez cedi ao convite do Urias e fomos, com meu irmão, acampar em Alexânia, num clube campestre chamado pomposamente Country Club Nova Florida. Alguém conhece? Devia correr o ano da graça de 76, talvez 77, e o lugar era bem bacana, com uma estrutura legal. Levei o violão, of course my horse, e uma matula de sandubas e refris e algumas poucas cervejas. Explico: o Urias não bebia uma gota sequer de álcool. Tem coisa pior que você beber sozinho? O lugar estava meio entregue aos vagalumes e mariposas e havia muita paz. Além da nossa barraca, pintou outra no fim da tarde. Um casal gay maduro curtia a beleza da vida conjugal no campo. Talvez me perguntem por que tenho certeza que era um casal gay? Se não fosse, meu amigo, era uma amizade que matava a sede na saliva, como dizia o Cazuza. Entenda. À noite, empunhei meu amigo violão e tome canções e canções. Sò eu bebendo cerveja e esfolando os dedos em meu repertório ainda pequeno, mas já satisfatório para uma baladinha. Os dois nature boys se achegaram timidamente, se apresentaram, e começaram a cantar conosco. Lá pelas tantas, um deles disse ter visto uma estrela cadente e o outro me pediu para tocar sua canção predileta: “Não identificado”. Notei que o Urias estava meio constrangido com a presença dos dois nubentes espargindo testosterona, mas, como bom mineiro do Prata, ficou na dele, tomando seu guaraná, deixando o dia desviver lentamente. A cerveja me deixou sonolento e eu acho que também comecei a ver estrelas despencando sobre o Nova Flórida. Era hora de dormir. Tempos depois, ainda com o Urias, mas agora com a presença do Banana e do Cleber, fomos acampar em Pirenópolis, na época das Cavalhadas. Se há algo parecido com a fauna de Woodstock-69 só pode ser Pirinópolis-81. As barracas, como uma espécie de mata ciliar de material inorgânico, margeiam o pequeno rio que corta a cidade. Cabeludos, laricas, esculturas em epoxi, máscaras, violões. Acordei de ressaca e tive dificuldade para abrir a barraca, pois um maluco simplesmente capotara na porta, sobre o zíper. À noite, o perfume de Marias Joanas deixava o ar como o de um enorme templo a céu aberto, cheio de incenso. Inspirado nessa aventura escrevi uma canção que dizia:

Houve um tempo em que as estrelas apagaram a luz
Nos banhávamos em cachoeiras, todos nus.
Índios de uma tribo enfeitaçada
no silêncio de uma madrugada
sob o sarcasmo de Deus...




Cantei-a para a galera, que nao deu muita bola e nem sei se estava mesmo lá.

Na paz!

Não identificado (Gal Costa)
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http://www.youtube.com/watch?v=dMDc9gWaUiw

O cara da guitarra

Por quais raios e trovões da pá virada esse menino deu de aprender violão? Ouvi isso de um amigo mais velho, lá pelos 1970 e rapadura. Fazia coro com minha avó que via no violão, não a uva, mas um jeito de se desencaminhar uma boa alma de cristão. Dizia ela: violão não leva ninguem pra frente. Na época, andava empolgado com a possibilidade de me tornar um Jimi Hendrix candango. Adolescente sonha, mermão, é sempre assim, ou você acha que John Lennon, nos 1950, nao sonhava em ser Elvis Presley? Pois muito bem, comecei a torturar os ouvidos paternos, fraternos e não tão ternos assim com meus acordes mal executados. Meu pai me incentivou, comprando-me um horrível "Rei dos violões" marrom cor de merda, que me fazia suar nas pestanas. A primeira canção que sofreu com minha insistência foi "Mother", do John Lennon, pois era fácil, três acordes, sem contar uma sétima; tinha andamento arrastado, lento, dava pra trocar as posições na boa, do ré pro lá pro mi...bom demais. Depois, fiquei mais metido a besta, e emendei com "The house of the rising sun".Como todo debutante em violão, dedilhar a música do caos familiar dos Animals era o óbvio. Quando ja estava melhorzinho, conheci uma figura que tocava demais, pelo menos para os meus padrões rústicos, o Wenner era "o cara". Lembro de vê-lo com o violão, exibindo-se pra gente, e cá dentro eu dizia pra mim: Quando crescer quero ser que nem o Wenner. Hoje, ao vê-lo bonachão, no exercício constante de povoar a terra, já nao quero ser como ele, basta-me a sua amizade. Uma lembrança muito peculiar da figura brincalhona do Wenner se deu numa noite em que eu e meu irmão, andando pela quadra, nos deparamos com o Wenner e o Nego Celso, encostados ao muro baixo no conjunto I da 19, dedilhando "Love Hurts". Parei pra ouvi-lo tocar e notei que meu irmão estava muito desconfortável, só entao percebi o motivo. O Wenner, muito sacana, vira-se para o Celso e comenta, apontando para o meu irmao, esse franguinho aí é que anda a fim da minha irmã, Amarilis. Enquanto meu irmão amarelava e se escondia no ôco-shame absoluto, Wenner sorria, sem nem perceber que o amor fere e deixa cicatrizes e que talvez houvesse mesmo algo rolando entre aqueles dois. Nunca saberei. Se alguma coisa havia, parece que morreu ali, naquela noite, com trilha sonora e a risada escancarada do nego Celso.

Love Hurts (Nazareth)
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http://www.youtube.com/watch?v=L2BjJbKQkgc

Sexo, melancias e videocassete

O grande sonho de consumo da galera de hoje é, sem dúvidas, uma TV LCD LED FULL HD super-ultra-hiper-cool que gratina, chuleia, costura, flamba e, além de transmitir os jogos da Copa, ainda vibra, que é pra ser usada nas noites solitárias. Deixando os exageros de lado, há 25 anos atrás a bola da vez era o videocassete e foi o que adquirimos em 1985. Morávamos na 407 sul, poucos meses de casado. Era simplesmente o máximo ter um videocassete, poder locar as fitas que quisesse. Bom, pra começo de história a oferta de filmes não era lá muito animadora. Lembram que as locadoras exigiam um cadastro enorme pra você ter o direito de alugar aquelas fitas muito caras? O nosso videocassete era da Sharp, um trombolhão que brilhava no escuro e que tinha, pasmem, um controle remoto! Detalhe: com fio. Alguém se recorda de ter tido um controle remoto com fio? Isso nos permitia sentar a uma distancia de uns dois ou três metros do aparelho. Era um conforto sem igual. Pois muito bem, a história que pretendo lhes contar aconteceu naqueles dias de descoberta dessa novíssima tecnologia. Tirem as crianças da sala que não vou ocultar nadica de nada. Tínhamos alugado três fitas para o fim de semana. Lembro bem de duas delas: “Indiana Jones e os caçadores da arca perdida” e um outro filme com o singelo título, muito sugestivo por sinal, de “Oh Rebuceteio”. Meus filhos têm a cara de pau de dizer que sou um cara Sem-noção. Assim, com hífen para torná-lo um substantivo cheio de adjetivação. “Pai, você é um sem-noção”. Ao escrever esse caso, aqui e agora, começo a entender o que eles querem dizer com isso. A história foi a seguinte: convidamos dois casais de amigos para curtir a noite, tomar um vinho, beber uma cerveja, assistir os filmes. O Cesar e Liu vieram no mesmo carro com o parzinho de recém-casados Cleber e Marilene. É importante, para os fins dramáticos dessa narrativa, dizer que a Marilene nunca participou da nossa roda de amigos, nunca viu a Bandanarquia, nunca foi para bares com nenhum de nós, por ser de outra geração e, talvez, por ter outra índole. Era muitíssimo tímida, uma cristã carismática, plena de recatos. Falava baixinho como se pedisse desculpa por respirar. Para completar a platéia daquela noite de gala, eis que chegam meus pais, minha avó, meu irmão mais novo. Pronto. Assistimos as aventuras do Harrison Ford atrás da arca e depois, sem titubear, vestindo minha roupa de Super-Sem-Noção, meti o “Rebuceteio” na bocona metálica do Sharp e mandei bala. PLAY. Pense no descalabro. Um filme com um título desses só podia mesmo honrar o vocábulo esdrúxulo que encimava a capa, até discreta, da fita. Não lembro bem da história, se é que havia mesmo uma história naquela sucessão de membros e líquidos e portas e orifícios e sussurros e gemidos. Bom, creio que vocês já adentraram o clima lúbrico dessa minha lembrança. Minha vó rezava pela minha alma de um lado, mas eu percebi que, de outro lado, seu olho curtia algumas das cenas, particularmente uma em que um ator, vestido de padre, apresentava o “mistério da fé” para uma freira de boca gulosa. Meu pequeno irmão, que tinha 10 anos na época, não sabia se olhava para a TV ou se sorria de tudo aquilo. Era um sacaninha precoce. Meu pai, an old dirty man como ele só, estava adorando a sucessão de quadros que o filme oferecia, enquanto minha mãe, visivelmente irritada, resmungava pela cozinha do apartamento. Isso não é coisa para se ver com crianças, ela dizia, mas o Super-Sem-Noção se esbaldava com aquela cena de pastelão, meio Felini, meio Pasolini, não a do filme, mas a da sala do meu apartamento. A família reunida diante de imagens tão, digamos, singelas só podia ser uma cena surreal de filme italiano. Nem Almodóvar pensaria em algo igual. Na grande final da meiga película, os atores se esbaldam num banquete, divertindo-se com bananas, melancias, jacas, carnes, bebidas.

A sessão acabou, ninguém se olhava, todos com a respiração alterada, ainda sem acreditar no que se passara. No outro dia, o Cesar me disse que, na volta para casa no Guará, a Marilene, que até então se mantivera em total silêncio , comenta baixinho: Eu nunca mais vou comer melancia. É tudo verdade, meus amigos.

Je t'aime moi non plus
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http://www.youtube.com/watch?v=0uqTp71YzQw



PS: rapaziada, comentários (quaisquer que sejam) são sempre bem-vindos. Se for elogio, ótimo. Se nao, tento melhorar. Sobre o texto, sobre as músicas. E torno a repetir: se não quiser receber mais, pelo amor de Deus me avise, ok?

Bom Fim de Semana pra todo mundo, com a graça de Deus e Basquiat.

Tempos de marmita

Em 1980 ingressei na UDF para estudar Economia. Vinha do CEUB, onde tinha abandonado meu curso de Letras. Nessa época trabalhava como escriturário no ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direito Autoral. Toda manhã, sob chuva ou sol, atravessava aquele terreno onde hoje está o CONSEI, e pegava um ônibus lotadão na parada da QE 34, via W3, saltando na parada que, hoje, serve aos frequentadores do Pátio Brasil. O ECAD funcionava num Edifício do Setor Comercial Sul e minha jornada de trabalho ia das 8 às 12 e das 14 às 18h. Foram tempos de vacas magras, muito trabalho, pouca grana, salário minguado, era realmente o começo da década perdida. Como saía muito cedo pra o trabalho e raramente tinha grana para comer em restaurante, levava o rango numa marmitazinha de alumínio, quadradinha, que eu ajeitava na bolsa de couro que usava, meio riponga, e que continha também meu material da faculdade (cadernos, canetas, apostilas). O horário de almoço era uma espécie de festa, pois abríamos, todos os funcionários do ECAD, as marmitas e constatávamos a oferta diversificada de “misturas”: um trazia lingüiça; fulana, carne assada, sicrano do departamento de pessoal trouxe frango, enfim, a gente acabava transformando tudo numa espécie de grande feira do troca: te dou um bife por essa coxa aí. Me dá um pouco da batata que te dou um bocado da cenoura. Tempos remotos. O mais triste era abrir a marmita e perceber que aquela batata frita, tão bonita pela manhã, estava mais murcha que os lábios da Dercy Gonçalves. Quando saía o pagamento, podia me dar ao luxo de comer algo melhorzinho. Nessa época, havia a Casas da Banha, logo em frente ao Setor Comercial, no subsolo do que é, hoje, o Venâncio/Pátio Brasil. Tinha um restaurante por lá, fechado com vidro, ar condicionado, com uma oferta de pratos mais “aprumadinhos” que os pê-efes que ás vezes engolia ali por perto. Mas isso era evento isolado na vidazinha arrochada daquele início de década. Saía do ECAD às 18h e ia a pé para a UDF, onde estudava até as 22h e 45m e, depois de enfrentar o mesmo ônibus lotadão da manhã, chegava em casa por volta da meia-noite. Certa vez, cansadaço, sentado no ultimo banco do coletivo, justamente aquele banco que se expõe ao corredor, com uma penca de livros no colo, caí no sono. No viaduto perto da Octogonal, naquela curva fechada em direção ao SIA, um Puma GT resolveu quebrar e assustar o motorista do ônibus. Quando dei por mim, estava lá na frente, perto da roleta e do cobrador, os livros espalhados pelo chão. Para piorar a situação, minha bolsa de couro estava aberta e a minha marmita resolveu fazer-se em duas, tampa para um lado, recipiente para o outro, embaixo dos bancos. Não sei se engolia a vergonha ou se cuspia minha raiva. O fato é que cheguei, como sempre, com muita fome em casa. Minha mãe e minha vó se revezavam à minha espera, para esquentar um rango. Meia noite e eu traçando um belo de um prato de feijão com arroz, antes de capotar na cama e apagar até que o sol tornasse a nascer. Imagine essa jornada de segunda a sexta-feira. Por ora, a lembrança dessa música do Guilherme Arantes, que se me passou numa manhã nublada, quando ia para o trabalho, naqueles 1980.


A cidade e a neblina (Guilherme Arantes)
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http://www.youtube.com/watch?v=lMddnAEI1iU

Ouvindo música, jogando bola

Meu pai trabalhava nos transmissores da Radio Nacional e ia para o trabalho de bicicleta. Do Guará 2 ao acampamento da Radiobrás era um pulo pela matinha que circunda um córrego que, hoje, é o parque do Guará. Nunca gostei de bicicletas e para ser mais sincero ainda, nunca gostei de qualquer coisa que implicasse esforço físico. Adorava bater bola com a galera nos campinhos “arrança-toco” que existiam pelo Guará de lama e terra. Não era um craque, nunca fui, longe disso, mas decididamente não era tão ruim a ponto de ser convocado por Dunga. Enquanto a coisa era puro prazer, divertimento, uma peladinha sem maiores conseqüências, eu estava lá, correndo, suando a camisa, estourando os pés, na boa, feliz da vida. Mas quando alguém aventava a possibilidade de formar um time, com treino, com horário, com disciplina, hora disso, hora daquilo... batia o espírito do Adriano em mim e eu estava longe de qualquer concessão. Apesar dessa repulsa aos treinos, integrava o time que tinha, entre outros craques, o Ailton e seu irmão Marcos, dois moleques muito bons de bola; o Adão, um negão estilo Serginho Chulapa, que acreditava ser o verdadeiro imperador da grande área, mas que não passava de um perna de pau cheio de boa vontade; o José Júnior, um ponta esquerda clássico que, ao ser lançado, costumava abaixar a cabeça e disparar atrás da bola, só parando no meio do mato, bem depois do limite do campo; o Jeová, bom zagueiro que dividia comigo a função de proteger o goleiro dos atacantes adversários; Marcos, meu irmão, que sempre jogou mais bola que eu e que dava uma segurança ali pelas laterais e mesmo na cabeça de área. O Paulo Bueno, que hoje mora em São Paulo, palmeirense bom de bola e que também vestia a mesma camisa. O Betão, um negão 2 x 2, que nos dava um certo alívio para o caso de explodir uma conflito mais corpo a corpo, se é que me entendem. E esse conflito surgiu um dia quando fomos convidados para jogar contra o pessoal da atual Vila Telebrasília. Na época aquilo não era ainda a vila que vemos hoje, urbanizada, casas de alvenaria, bonita, mas uma espécie de invasão chique, no final da asa sul. Havia um campo de terra, muito melhor que os nossos e que, hoje, para quem passa por ali e vê, é um verdadeiro show de gramado iluminado. A partida correu tranquilamente e a molecada da Vila era pior e menor que a gente. O resultado não poderia ser outro: goleada na rapaziada de lá. O que ninguém esperava era a chuva de pedras que, de repente, enquanto nos preparávamos para ir embora, começou a cair. Os maus perdedores tinham também, para nossa sorte, péssima mira, e as pedras não chegaram a atingir ninguém, mas foram o suficiente para nos botar para correr de lá. Não me recordo quem nos tinha dado a carona para o jogo, a mim e a meu irmão, mas lembro que no toca-fitas do carro tocava uma velha canção de Michael Jackson.


In our small world (Michael Jackson)
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http://www.youtube.com/watch?v=dh0CWxtMZag

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Questão de ordem

Em janeiro de 1978 eu deixei o Banco do Brasil. Era a regra: os menores deveriam deixar o Banco sessenta dias antes de completarem dezoito anos. Isso por causa de alistamente militar, eu presumia. Foi um dia triste, chovia lá fora, mas acredito que chovia muito mais em mim, pois eu realmente gostava de trabalhar no Banco do Brasil. Como fizera nos últimos anos, saí do Banco e fui caminhando para a Rodoviária. O meu trajeto incluía um atalho pelo Touring, quando conseguia driblar o segurança e descer as escadas para chegar a plataforma inferior da rodoviária. Por estar meio down e cheio de vazio, mudei meu itinerário e resolvi dar uma passada no Conjunto Nacional, ver uns tênis, uns discos, talvez uns livros. Subi as escadas rolantes, esbarrei no formigueiro de gente e mergulhei no centro comercial. Como menor estagiário do Banco, devo reconhecer, deixei a minha infância para trás e, bem ou mal, adentrei o mundo adulto. Foram quase três anos de trabalho, de construção de amigos, de muitos bons momentos e pouquíssimos dissabores. Trabalhava na Agência Central, atrás da bateria de caixas. O horário de trabalho era das 13 às 18, mas invariavelmente saía depois do expediente. Nessas ocasiões, os amigos ficavam em bando esperando que eu fechasse o barraco para ir com eles. Naquele dia de janeiro, sozinho (o que por si só era muito raro, uma vez que nunca estava só), andei pelo Conjunto Nacional com a cabeça no futuro incerto. Juntara uma graninha e decidira viajar, ainda naquele mês, para João Pessoa, que eu ainda não conhecia. Entrei na Discodil e fiquei fuçando uns bolachões. Sempre gostei de coletâneas do tipo The greatest hits of Fulano ou The Best of Sicrano e uma séria em particular sempre me seduziu: “A arte de”. A primeira que adquiri foi a de Caetano, depois a do Chico e uma do Elton John. Recentemente tinha comprado a Arte do Tim Maia. Peguei um exemplar da Arte de Gilberto Gil e fiquei ouvindo na cabine de som da discoteca. Havia, naquele tempo, uma coleção da Editora Abril que circulava pelas bancas, eram pequenos discos que vinham numa revista de Mestres da MPB. Eu tinha o exemplar do Gil e adorava uma música em especial: Questão de ordem (vai em anexo). Na cabine, ouvindo Gil cantar Marginalia 2, fui me empolgando com aquilo e a grana no meu bolso foi pedindo pra dormir na registradora da loja. Não deu outra, comprei o bolachão verde do Gil e, por alguns instantes, desliguei-me do futuro. Era um rapaz de 17 anos, era um rapaz de 17 anos...

Questão de ordem (Gilberto Gil)
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http://www.youtube.com/watch?v=BNeALhaMSjQ

Clara Crocodilo fugiu

Foi uma dificuldade convencer os amigos a irem comigo ao show na Sala Funarte. Ninguém gostava da música do sujeito. "Quem quiser que ache isso bonito" diziam alguns mais objetivos. "Isso não é música" decretavam outros, mas eu adorava aquele estranhamento provocado pelos metais e piano, aquela harmonia com cara de caos, a melodia aos pulos e paradas, as vozes muito agudas de Vânia Bastos e Tetê Spindola em gritante contraste com a voz de Arrigo na gutural narração da história de Clara Crocodilo. Eu comprara meu bolachão maravilhoso com a ajuda de uma colega de São Paulo. Ouvi-lo era uma tortura para os mais chegados e, nesse sentido, eu era um sádico por natureza. Nessa época andava lendo muita poesia, umas coisinhas russas (Maiacovski, principalmente) e inglesas (T.S.Elliot, Ezra Pound e, especialmente, Allen Ginsberg - me refiro à língua inglesa). Os irmãos Campos, mais o Pignatari, também habitavam meu universo estético naquele início dos 1980 e eu enxergava tudo isso na música de Arrigo Barnabé. Uma descoberta: a música popular pode ir muito além do feijãozinho diário. A capa do Clara Crocodilo é um delírio com aqueles olhões enormes, simplesmente fantástica, um primor de trabalho gráfico (ver anexo). Uma das grandes perdas provenientes da tecnologia do CD foi justamente as capas dos discos, nunca mais teremos o prazer de um trabalho gráfico como o do Physical Graffitti ou qualquer dos discos do Pink Floyd. Azar o nosso. O show foi uma maravilha, a platéia mínima, o entusiasmo máximo. Uma das cordas do baixo de Otávio Fialho arrebentou-se no meio de “Diversões eletrônicas”, mas ele levou o show na maior manha e competência. Ao final do espetáculo fiquei enrolando na esperança de ver o Arrigo de perto, de falar com ele. Na timidez peculiar ao fã, ainda comentei com o Josélia, o Cesar e a Liu que “a gente bem que podia chamar o Arrigo pra tomar umas”. Desnecessário acrescentar que ninguém teve coragem de ir ter com o geniozinho do mal da música brasileira dos 1980. Ainda o vi, parado, sozinho, num canto da sala Funarte, mas mesmo assim não conseguir coragem para falar com ele. No dia seguinte, numa entrevista do Arrigo para um jornal local, além dos comentário de praxe sobre a cidade, sua arquitetura, luzes, etc., o Arrigo comentou: A cidade me pareceu meio fria, estava a fim de sair pra beber com as pessoas, mas não pintou nenhuma oportunidade. Juro, meus amigos, ele realmente declarou isso. Só de raiva, botei o Clara pra rodar. Anos depois, em 1997, reencontrei o Arrigo num show solo no HOtel Tambaú, em João Pessoa. Estava bêbado, tropeçando nas teclas do piano e nas palavras. Clara Crocodilo fugiu, Clara Crocodilo escapuliu.

Sabor de veneno (Arrigo Barnabé)
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http://www.youtube.com/watch?v=7mfYp7JGNNE

Toda donzela tem um pai que é uma fera

Em meados dos 1970 namorava a Diana, colega de Escola Industrial e de Guará 2. Ela morava na QE 32 e nosso namoro era um namoro escondido ou, pelo menos, era uma coisa velada, não lembro bem que rolo era aquele, mas a impressão que se me ficou daquele chamego todo foi essa: coisa oculta, de rosca. Se toda donzela tem um pai que é uma fera, então a Diana estava muito bem representada em matéria de pai, ou de fera. O homem era uma besta. As filhas tinham muito medo do sujeito, que parecia não ser muito condescendente com a idéia de ter um outro galo ciscando no galinheiro. E olha que eu, no máximo, seria um frangote. Certa noite, saí de casa e fui bater a porta da Diana. Ia mais cheiroso que quenga, como diz o meu sogro. O pai veio me receber com uma cara de poucos amigos. Pressenti que o bicho ia pegar, mas não arredei pé, pois sempre fui muito metido a besta e essa atitude, se eu não controlar, ainda vai me render maus momentos, exatamente como esse que vou relatar. Para meu azar, a Diana não me tinha dito que ia ao Circo, ou espetáculo similar, não me recordo bem, com a irmã, e eu bati em sua porta justamente na oportunidade que seu pai aguardava: não haveria testemunhas. Cenário: uma rua quieta do Guará 2. Noite. Personagens: Dentro do quintal, ao portão, o pai babando sua ira. Do outro lado, na calçada, o frangote atrevido procurando por sua namorada que, por acaso, era filha do sujeito. Não houve diálogo propriamente, pois diante da minha pergunta: Posso falar com a Diana? O homem disparou sua metralhadora, em alto e bom som, para todo o conjunto ouvir: Seu moleque, vagabundo, vem na minha porta procurar a minha filha, você não se enxerga, não tem vergonha, não, seu filho de uma ... conteve o palavrão e emendou ... salafrário. Não quero ver sua cara aqui por perto, a Diana não é pra o teu bico e tome achincalhe. Pense agora na cara de tacho que o Leozinho aqui ficou. Mas, metido a besta como disse que sou, antes de sair, dirigi-me petulantemente ao velho: Avise a ela que estive aqui. O cara bufou do lado de lá e eu achei melhor ir tirando o meu cavalo daquela fazenda pois já pressentia a coisa piorando pro meu lado. No sábado seguinte havia uma festa no que seria futuramente a igreja do Divino Espírito Santo, entre a QE 32 e a 34. Havia um barracão de madeira que servia de igreja e também era o lugar das reuniões do grupo jovem. Havia umas barraquinhas para arrecadar dinheiro para a construção da paróquia e nessa festinha eu pretendia encontrar com a Diana. Para meu espanto, vi, em grande e animado papo com o meu pai, a fera do meu sogro (?). Nardo, berrou meu pai ao ver-me, vem aqui que quero te apresentar um amigo meu. Amigos, eles eram amigos, pasmem. A vida é muito engraçada, parece mesmo um enredo de novela. Esse é fulano. Estendi a mão para ele. O homem não sabia onde enfiar a cara, olhou para mim com o jeito mais desconfiado do mundo e disse, sorrindo, ao meu pai: Já conheço seu filho. Ele namora a minha filha. É um menino bom. E eu tive mais uma lição de como somos todos hipócritas. A Diana me abraçou e me chamou pra dançarmos uma música bacana no barracão. Uma mela-cueca de primeira que nos embalou naquela noite. Juntinhos, cantando…

Morning, just another day
Happy people pass my way
Looking in their eyes
I see a memory
I never realized
you made me so happy, oh Mandy


Mandy (Barry Manilow)
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http://www.youtube.com/watch?v=MZ352-kAhr8

terça-feira, 11 de maio de 2010

A Belíndia era a Bélgica e só

A censura era um bicho muito escroto, como diriam os Titãs, e que habitou, sem muito consenso, as terras brasilis durante muitos anos. Esse bichinho, que se alimenta do nosso medo e sobrevive às custas de fuzis e baionetas, tem uma predileção por elementos da arte: música, pintura, teatro, literatura. Gosta de devorar qualquer coisinha que interfira na ordem das coisas e, por essas e por outras, a gente tinha sempre que enviar para avaliação desse bichinho dos diabos as nossas letrinhas musicais. Quando participei de um festival de música, em 1900 e lá vai rapadura, convidei uma amiga, a Tania, para declamar alguns dos seus versos. Inscrivi uma música que eu adorava cantar na época, "Acroamático", e que a galera também parecia curtir muito. A música tem três estrofes que descrevem um mundo de privilégios (A Bélgica), um mundo de desvalidos (a Índia) e o mundo daqueles que sustentam essa situação (o Leviatã nacional). Combinei com a Tania que, entre uma estrofe e outra, ela declamaria seus versos de protesto. Toda a performance foi pensada para ser de confronto, tanto é que, por causa do bichinho escroto da censura, a letra encaminhada aos jurados era diferente daquela que resolvi cantar na hora. O pessoal da Dona Solange (a chefe do meigo serviço de censura) rejeitara em minha música alguns termos nao condizentes com a moral e os bons costumes. Durante a apresentação, como convém a qualquer bom festival, começaram a nos lançar vaias, que foram aumentando, aumentando, e antes que terminássemos ninguem mais conseguia ouvir o que eu cantava. Pra nosso azar, nao eram apenas vaias o que nos lançavam, eram papéis, clipes, avioezinhos de papel, desprezo, achincalhes e outras cositas mas. No final de tudo, a notícia vinda do corpo de jurados: a música estava desclassificada. Lembro que recebi a notícia no bar do clube, enquanto aguardava o resultado do festival. Foda-se, pensei, desce mais uma, pedi ao garçom. A Tania bebeu a cerveja comigo.
Segue "Acroamático", letra logo abaixo:

Acroamático
(Léo)

Eles não tinham noção de nação
a Belíndia era a Bélgica e só.
Tinham toda gasolina
e toda cocaína de Ponta Porã.
Tudo era válido
tudo era fálico
tudo era ácido e pó
... no planalto Central. (repete)

Eles dormiam na Índia
no beco das putas
das bixas, do bar.
Eles viviam das sobras
do grande banquete parlamentar.
Tudo era fétido
tudo era mórbido
tudo era sobreviver
... no planalto Central (repete)

Eles se viam en passant
entre goles de Dimple
e vidro fumê.
Dormiam sobre o capacho
d'el Rey
no pálácio em busca de mel
Tudo era fácil
tudo era fóssil
tudo era ócio
o ideal do planalto central?
do planalto Central do País?

(música incidental:
Desperta o gigante brasileiro
desperta e proclama ao mundo inteiro
num brado de orgulho e confiança
nasceu a linda Brasília
a capital da esperança...)


do país.

Atualíssima, né?

A mulher do Fassbinder

Foi o Régis quem cantou a bola. Ligou-me um dia dizendo que uma cantora, com quem andava tocando (o Régis é baterista, tocou conosco algumas vezes), precisava de um letrista para umas músicas. Nessa época, 1989, trabalhava numa agência da Caixa Econômicam na 515 sul, meu segundo filho estava a caminho, a música parecia ser um antigo sonho e só, tornara-me um bancário exemplar. A cantora me ligou, marcamos, e apareceu no meu apartamento por volta das 16 horas. Achei-a muito simpática, vozeirão, cabelos curtos, cara de moleca. Contou-me que conseguira um contrato para gravar no Rio de Janeiro e que o produtor, que também era compositor, lhe havia entregue uma fita com algumas músicas, sem letras. Perguntou-me se eu não gostaria de ouvir e escrever as letras. Eu disse que poderia tentar, que ela deixasse a fita comigo e eu iria avaliar a possibilidade de fazer algo legal. As músicas eram terríveis, umas coisas esquisitas com muito sintetizador. A melodia era paupérrima, beirava um axé de quinta categoria, mas tudo bem, encarei o desafio e fiz uma letra tão estranha quanto a música. Falava de um vampiro em depressão (reconheço, era piegas sim) e pelo que me lembre tinha versos como esses: Pelas noites todas sinto o vento frio da cidade /O relógio diz que pesa em meus ombros toda a eternidade... Liguei pra ela e marcamos um encontro, que se deu no apartamento que ela dividia com uma companheira, na Asa Norte. Mostrei-lhe a letra cantarolando sob a fita que rolava no gravador, mas ela, assim como eu, estava torcendo o nariz para a música (creio que só para a música). Resultado: Joga fora, no lixo (como cantaria a Sandra de Sá). Ela me disse que o Régis falara muito bem de mim, de minhas músicas. Toca uma pra nós aí? E eu, meio enferrujado, peguei emprestado um seu violão e toquei algumas músicas que ela tentou seguir solfejando. Gostou de um blues que eu tinha feito para as personagens do Fassbinder (A mulher do Fassbinder) e ficou interessada em cantá-lo nos shows que andava fazendo no Bom Demais. Percebi que eram muito tímidas as meninas. Sua companheira, meiga como uma pitanguinha, ofereceu-se para fazer uma vitamina, lembro bem, de mamão com laranja. Fumamos, bebemos, cantamos um pouco. Ela tinha ensaio, precisava ir, e eu também tinha coisas a tratar. Nos despedimos com abraços, beijinhos e um até mais. As coisas têm o péssimo hábito de tocar nossa caminhada sem aviso, sem sinal, ou será que somos nós que ainda não aprendemos a ler os avisos e sinais? Nunca mais encontrei-me com essa cantora, mas vi sua foto um dia, num disco que trazia seu nome: Cássia Eller. R.I.P.


Por enquanto (com Cassia Eller)
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http://www.youtube.com/watch?v=XVVmAG0RXmo

sábado, 8 de maio de 2010

Mulheres loureiras




Evóe, Léo!

Sensacional essa do Brijuí. Uma das melhores da série.

Brijuí....Eu chegeui a pensar que esse nome era um sinônimo de priquita (rs).

Você percebeu o enorme potencial poético dessa tua (dela) frase: "No Brijuí, todo homem se perde"?

Bom, não achei nada sobre o Brijuí, nem associado a Jataí. Mas achei Brejuí, que é uma localidade em Currais Novos (RN), onde há uma mina de shellita, mineral rico em tungstênio.
Bom, o nome dessa localidade vem do Tupi-Guarani "Ibira-ju-i", que significa "Rio dos loureiros", conforme o Dicionário de Palavras Indígenas do Clóvis Chiaradia. E loureiro é uma árvore, como se sabe, cujas folhas dão um famoso tempero. Já loureira,segundo o Houaiss, é:


 substantivo feminino
1
que ou quem procura agradar, seduzir (diz-se de mulher); coquete
2
Uso: pejorativo.
m.q.
meretriz

Há nisso tudo uma enorme coincidência ou um caminho tortuoso pelo qual, entre corrupções e associações, chegou-se ao nome "Brijuí" para a zona de Jataí. Mas como não nos interessa uma investigação científica, e sim uma descoberta poética, poderíamos explorar o tema numa letra.

Fiz um poema, que pode ser dilapidado para a construção dessa canção. Olhe só:

“No Brijuí, todo homem se perde”,

Me dizia minha avó, perfumando a roupa de seu homem.

No Caminho tortuoso que leva àquela mina,

Tudo se some, eu vim a descobrir:

O tempo tortuoso é sumidouro de homens,

Corruptor de palavras e de nomes.

A minha era magrela e quieta, gorda e loureira, a de meu camarada.

E na casa de beira de estrada,

À luz vermelha de uma sala,

Encontrei o amor de perdição.

Os primeiros louros me cingiram a fronte,

E me anunciaram o fado de poeta,

Mas a magrela me fez ir, contente desse breve enlace.

Eu, talvez pensando que deixasse um antro,

Na verdade, abria as portas para o labirinto:

Ah! O corpo de tantas mulheres

E o engano das palavras, sempre-pontes para mais palavras para mais

mulheres para mais palavras...


No Brijuí, todo homem se perde

No Brejuí, todo minério acende a lâmpada que esconde

No Ibira-ju-í, a flor do louro cinge os lábios de um rio imorredouro."


Copiem o link da janela "marcadores", para curtir um clássico do bordel, já que eu não consegui aplicar o endereço no local adequado.


sexta-feira, 7 de maio de 2010

Tânatos

A morte chegou na minha vida com uma carta de apresentação violenta, surpreendente. Na noite de 19 de dezembro de 1971, voltávamos da festa de Natal dos funcionários da Rádio Nacional. Quando atravessávamos a rua para adentrar a SHIS Norte, dois faróis ensandecidos, como um animal de aço faminto, arrancou minha irmã das mãos de minha mãe e a levou para o caos, arrastando-a pelo asfalto, por muitos infindáveis metros e gritos. Dias em coma, sucessivas cirurgias, e seu corpo foi sepultado em 27 de dezembro. De repente, na ausência de minha irmã, senti a presença da morte em minha casa e era uma presença escura, densa, muito dolorida, marcada no rosto triste de minha mãe, na figura esquálida do meu pai. Uma espécie de vazio cheio de angústia instalou-se à mesa nas refeições. Um ano após esse acidente, um grande amigo encontrou-se com essa mesma presença macabra e, como eu, sentiu sua força. O Hideraldo perdeu seu irmão mais velho. O carro em que ele viajava, no banco de trás, acidentara-se seriamente no local onde se dava a construção dos viadutos que unem a W3 norte e sul, por onde passa o Pacotão nos carnavais. Avisaram-me da tragédia e eu fui correndo para ver meu amigo. Movia-me a necessidade de dizer a ele que eu sabia muito bem o que ele estava sentindo e que eu estava lá para ajudá-lo de alguma maneira. Na sala, parentes choravam, abraçavam-se. Essa cena é muito familiar. Lembro que quando minha irmã morreu, estava na casa da minha tia, sentado no chão da sala, assistindo Perdidos no espaço. Minha mãe na cozinha, conversando com minha tia. Vi o rosto de meu pai na janela, chorando. Minha, vendo-o do lado de fora, correu para abrir-lhe a porta. Era um farrapo estenuado que dizia, aos prantos: Nossa filhinha morreu, Zélia. Essas coisas parecem gravar-se na memória como inscrições no mármore. Entrei pela casa do meu amigo, procurando-o. Alguém me disse que ele estava no quintal. Encontrei-o sentado no chão, encostado no muro, abraçado às pernas que estavam encolhidas, em choro sentido. Fiquei em pé na porta, olhando-o em silêncio. Não sabia o que dizer e mesmo que soubesse não diria, pois estava relembrando uma cena que presenciara na virada do ano de 71 para 72. Da janela de casa eu vi, naquela noite de Réveillon, meu pai e minha mãe abraçados, chorando a perda da minha irmã.

Pois é, pra quê (Sidnei Muller)
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http://www.youtube.com/watch?v=sAhFBHeG-os

Eros

Desde muito pequeno, por volta dos oito ou nove anos, ouvia minha avó falar que no Brijuí todo homem se perde. Aquela afirmação, na minha cabecinha de sonhador, construía a imagem de um enorme labirinto, pleno de perigos, aventuras, prazeres insuspeitados, com uma placa na entrada: Brijuí. Eu sabia que o tal lugar de perdição ficava em Jataí, onde moravam meus tios Rosemiro e Maria do Carmo. Nas seguidas férias que costumava passar na cidade, o labirinto foi tomando forma concreta: o Brijui era uma espécie de minúscula pracinha, circundada por casas muito animadas, com luzes vermelhas na porta. Lembro de uma vez em que uns vizinhos do meu primo, garotos mais velhos, me disseram que no Brijuí “a gente goza muito”. Na ingenuidade de meus anos fiquei a imaginar o que seria realmente o ato de gozar e porque, na visão da minha avó, ele estaria associado a estar perdido. Logo, o Brijuí não era mais um labirinto, eram casinhas de gozo e perdição e eu precisava descobrir os seus segredos. O tempo e o mundo me fizeram desejar o Brijuí. Minha tia era uma mulher singular, para não dizer que ela era uma espécie raríssima de mulher. Nas sextas-feiras ela escolhia uma roupa para o marido, botava um perfume numa sacola e, por meio de um empregado da oficina mecânica que tinham, enviava para o meu tio. Eu sabia (e todos sabiam) que ele, após fechar a oficina, saia todo cheiroso e de roupa limpar para se “perder” e gozar no Brijuí. Maria do Carmo nunca demonstrou raiva ou ciúmes. Parecia-lhe (ou pelo menos parecia a nós) que essa tarefa, enviar roupas e perfumes para o marido, mesmo sabendo o destino daqueles objetos no corpo do meu tio, era a coisa mais trivial do mundo. Em meados dos 1970 meu tio arrastou-me, a mim e a meu primo, para uma visita ao Brijuí. O coração parecia bater na ponta da língua quando adentramos uma das casas com a luz vermelha. Na sala, cuja iluminação era fraquíssima, algumas mesas, muita bebida e mulheres sorrindo, falando alto, dançando. Eram figuras femininas muito obesas, trajando roupas muito curtas. Meu tio se divertia com algumas delas, pagando bebidas, passando a mão em todas as partes. Era o seu ideal de beleza feminina, mulheres dignas de um Renoir. Estava muito feliz e fazia questão de demonstrar essa felicidade distribuindo agrados às mulheres, pagando rodadas de bebida aos amigos, lambendo a cria, o meu primo, que estava visivelmente nervoso. O que deu pra perceber, pelo desfile de mulheres em nossa mesa, é que ele tentava escolher uma delas para nos iniciar na perdição e no gozo. Lembro particularmente de uma magrela, pois era a única mulher magra daquela casa. Essa é tua, Nardo, ele disse. E sumi por um corredor, que era um labirinto, e me perdi.


Eu vou tirar você desse lugar (Odair José)
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http://www.youtube.com/watch?v=rBP9nAL00Nk

Feridas e culpas

Adolescentes costumam fazer merda, isso parece ser uma regra, um mandamento. O que lembro, às vezes, dos meus treze anos não são necessariamente coisas que me orgulhem ou me envergonhem. No mais, a memória cotidiana é sempre banal. Nosso heroísmo é, no fim das contas, enfrentar o dia a dia. Quer coisa mais trágica que o lugar-comum da existência? Mas quero falar de algo que, até hoje, me envergonha e me traz um sentimento dolorido de culpa. Em 1973, saía da Escola Industrial de Taguatinga ao meio dia e corria para o ponto de ônibus que havia em frente a Vitamina Central. Um colega de escola (que vim a reencontrar na UDF, anos depois) me fazia sempre companhia nas viagens entre a EIT e a Shis Norte, era o Austregésilo. O Austral era um sujeito de risada farta que parecia extrair sonoridades singulares ao passar pelos dentes grandes. Sujeito muito inteligente e persuasivo. Nesse dia, não sei por quantas e quês, convenceu-me a cometer uma “merda”. Coisa de adolescente, como disse no início. Esperávamos a sucata da Auto Viação São Sebastião, aquele monstrengo azul e sempre lotado, quando ele me ofereceu um alfinete e, pelo seu sorriso diabólico, pude perceber que vinha chumbo grosso. Sua idéia, exposta furtivamente entre risadas sem controle, consistia em aproveitar a costumeira lotação exagerada do coletivo, nos posicionando no fundo do veículo, para, na entrada das pessoas, espetarmos algumas pobres vítimas de nosso sadismo. Por que topei tal disparate só encontro explicação na crença de que todos somos, por princípio e natureza, maus e sádicos, cabendo às porradas do mundo o processo educativo e repressor a esses monstrinho que trazemos. Pois muito bem, o Austral se divertia espetando um e outro, que gemiam aqui, pulavam ali, comentavam “Algo me furou”, e passavam batidos e se coçando. Eu, ainda congelado de medo, apenas sorria da traquinagem do amigo. E ele: Porra, anda, você não vai espetar ninguém? Nisso, uma moça adentra as escadas do ônibus carregando seu material de escola. Enfio minha mão discretamente entre as pessoas que estão em pé ao meu redor e meto o alfinete nas partes traseiras de minha vítima. Isso me dói, em mim, até hoje. Perdoem-me a repetição, mas é só pra ressaltar como a dor é certeira. Na minha mente, a impressão que se me ficou gravada, é a de ter enterrado todo o alfinete nas nádegas da menina. Lembro com vergonha a expressão de dor que ela construiu na cara distorcida, nenhum gemido, nenhum grito, nenhum comentário. Tudo estranho, pois esperava alguma reação mais tempestiva. Seu rosto muito vermelho tentando ver quem ou o que a atingira. E eu, contendo o riso, escondido atrás dos passageiros. A viagem transcorreu em paz. Desisti de ficar espetando as pessoas. De repente, uma mulher no banco em frente ao em que estávamos, levanta-se e aponta o dedo para mim e para o Austral. No seu jeitão de italiana-cearense, ela principia um grande barraco no ônibus, que, para nossa sorte, já estava mais vazio. Berrava ela: eu vi esses dois moleques filhos da puta espetando as pessoas. Estavam com agulhas, eu vi, ela babava seu ódio. Espetaram a Noêmia (era a minha vítima), essa menina é filha da minha vizinha, é uma garota boa, ela é surda e muda, não merecia essa maldade. Terríveis vocês são. Moleques, vagabundos. O cobrador me olhava com cara de poucos amigos, as pessoas do ônibus pareciam querer nos crucificar. Me vi perdido, arrependido do que fizera. Coitada da Noêmia, surda-muda, por isso não dera um pio quando meti-lhe o alfinete. A coisa caminhava para uns bons cascudos ou linchamento (como sou exagerado, não?) quando, aproveitando o descuido do motorista que abrira a porta para a entrada de passageiros, o Austral pulou do ônibus e me deixou na fogueira. Abandonou-me às feras. Todos me olhando, fuzilando-me. Pela primeira vez na vida tive que construir um raciocínio lógico para escapar do castigo. Como meu amigo já sumira no mundo, tive a idéia de dizer: Não fui eu quem fez isso, foi meu amigo. Ele fugiu e eu fiquei porque não fiz isso. Quem não deve não teme. Minha explicação convenceu as pessoas que pararam de me olhar com raiva. Noêmia desceu algumas paradas depois, ainda passando a mão na bunda machucada, na popa em que lhe meti o alfinete. Fui pra casa com uma ferida que dói até hoje e só agora entendo os versos de Taiguara: Quem não fere, vive tranqüilo.

Piano e viola (Taiguara)
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http://www.youtube.com/watch?v=CDh4Kz4UXm4

Um instante, maestro!

O homem na televisão, muito elegante, jeitão de quem toma banho e passa talco e, por isso mesmo, com cara de tricolor enjoado (eitcha, pleonasmo, botava o indicador pra cima e dizia, cheio de autoridade e empáfia: Nossos comerciais, por favor! Ou então emendava: Um instante, maestro. A galera de hoje, que assiste o Faustão ou Gugu, não tem idéia de quem foi Flávio Cavalcanti. Vocês, velhinhos, tenho certeza, se lembram dele promovendo cantores da velha guarda, seleção de calouros, julgamentos públicos, condecorando autoridades, shows, gincanas e, principalmente, ratificando os valores da ditadura militar brasileira (baseados na família, na religião, no estado, na ordem, na disciplina, na hipocrisia do bom-mocismo, etc.) no horário nobre da TV Tupi. É notório, hoje, o engajamento do apresentador com a galera da quartelada de 1964, mas o que eu quero lembrar aqui é um quadro do seu programa onde ele, com todo o seu status de amo e senhor, decretava se uma música “servia” ou não para os ouvintes da pujante nação brasileira. Dizendo-se o “entendido” em matéria de música popular, o Flavio Cavalcanti quebrava (é isso mesmo, quebrava, estilhaçava, destruía) os discos que traziam músicas ruins. Imagine hoje o Faustão ou o Luciano “Ruqui” quebrando, ao vivo, o CD de Ivete Sangalo porque a música, a seu único e bel juízo, é ruim. Era justamente isso o que se passava com o porta-voz da quartelada. Mas uma noite, e eu me lembro bem disso, ele teceu grandes elogios a um talento jovem. A música que ouviríamos em instantes, ele dizia, era bela, poética, de muita sensibilidade. O disco de Sá, Rodrix e Guarabira (se não me falha a memória, era um compacto) salvou-se do sacrifício público e Elis Regina os gravou anos depois.

Casa no Campo (Zé Rodrix)
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http://www.youtube.com/watch?v=75LcZFvLRrQ

sábado, 1 de maio de 2010

Olha o jegue e a jumenta caminhando

A praça da QE 19 estava lotada. Um alvoroço danado, pois rolaria algumas apresentações. Corria o ano de 1983 e pelas caixas de som a voz de Fredy Mercury ameaçava "We will rock you". Havíamos sido convidados para tocar e estávamos bem animados. O evento fazia parte do que, ainda hoje, se chama praça de lazer (ou rua de lazer). A administração do Guará fecha a praça ao tráfego de automóveis, promove gincanas, jogos, brincadeiras e apresentação de artistas da cidade. A Bandanarquia estava pronta para a festa. Eis que, nos bastidores, alguém nos avisa: o pessoal do Nardeli está todo aí. A priori ficamos naquela de "E eu com isso?". O informante alerta: "Vocês vão levar o reggae do jegue, não vão?". O Nelson olhou pra mim, que olhei pro Zé, que olhou para todo mundo. E aí ? Cantamos? Melhor não cantar, pode dar rolo. Os caras podem não entender a brincadeira. Melhor não. Cantamos sim, porra, nada a ver, vamos cantar sim. Devo explicar que essa insegurança toda devia-se ao fato de que o tal reggae era, na verdade, uma espécie de brincadeira musical em forma de fábula. Alguém já ouviu uma fábula-raggae? A música conta a história de um jegue regueiro que é apaixonado por uma jumenta punk. Pronto. Bastou para imaginar uma reação destemperada do pessoal do Nardeli, notórios rastas-regueiros do Guará 2. Subimos ao palco, o dito cujo nas mãos, seja o que Deus quiser. Nos primeiros acordes em menor já deu pra perceber que a qualidade do som alugado para o evento era muito ruim e isso diminuia em muito a chance de a gente apanhar, pois ninguem iria entender mesmo o que a gente estava cantando. Puxávamos o refrão, e a galera ia atrás: Pio-lho-lho....pio-lho-lho...O show foi um sucesso. O pessoal do Nardeli dançou a massa do reggae que a gente despejava pela tarde.

O raggae do jegue (Léo)
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http://www.youtube.com/watch?v=WEmMUqoF230

Dentes moles e avanço powder dry, naturally

Prezado Leo,

Segue mais outra da mesma época – 1973.


Depois que o meu tutor se casou com uma paulista de Itápolis, todas as férias eram passadas naquela corruptela flintstoniana que realmente honrava o nome indígena que lhe impuseram. Durante a viagem fazíamos a grande passagem entre Minas e São Paulo atravessando uma ponte sobre o Rio Grande (achava esse nome muito maneiro, me lembrava os faroestes da época, em cinemascope) em cujo lado mineiro descansava uma cidade de nome Fronteira que tinha a estátua do bernardão , um sujeito mijando em um poste. Cara, isso era muito escroto mesmo naquela época, muito Bukowski. Pois bem, em um desses postos de estrada eu gastei minha mesada comprando um estilingue muito maneiro, todo de plástico e com o elástico e tals, parecia uma arma tecnológica somente por ter o corpo de plástico. Quando chegamos ao nosso destino (a cidadezinha de Itápolis) fomos para a chácara onde eu larguei minhas coisas no quarto e fui desbravar territórios. Nunca gostei de mato mas agora eu estava armado!! Fui catando pedras para munição e comecei minha missão Delta. Inimigo avistado às quatro horas, um bando ameaçador de galinhas. Mirei e pimba! Errei todas. Acontece que um soldado nunca desiste. Voltei minha atenção para uns porcos vietcongues e para minha surpresa errei novamente todos os meus tiros. Já puto de raiva por ter que desistir da minha carreira como franco atirador, dirigi toda minha ira para umas vacas que pastavam pachorrentas no mangueirão. Juntei a isso toda a meu asco pelo rock progressivo de atom heart mother. Apontei, mirei, estiquei o elástico até não mais poder e de repente o mundo explodiu em um zilhão de cores dolorosas!! Pranas pululavam ao meu redor e tenho certeza de que a vaca riu.
Acontece que durante a minha missão eu fiquei com a mão suada e como o corpo do estilingue era de plástico o tiro saiu pela culatra. O Corpo do estilingue atingiu meu rosto com toda a força e rasgou o meu retrato em 16x9 abalando todos os meus dentes de tal modo que tive que passar mais de mês só tomando sopa. E a dor!!!! Como doía a desgraçada da minha arcada. Tomei uma porrada de novalgina e a dor não passava. Fui no banheiro e aspirei um pouco de avanço powder dry e a dor passou. No rádio da cozinha tocava uma música do Gilbert O´Sullivan – Alone Again, Naturally. Essa música unida ao delay que o avanço causava...........uau.

Segue o link http://www.youtube.com/watch?v=D_P-v1BVQn8

Os: anos depois pude entender essa letra. O cara da música era um azarado!!

O outro lado da lua

O Zé envia sua colaboração. Configurei o blog para aceitar a postagem de determinados convidados. Deve estar dispoível em breve.

"Nunca fui muito de curtir rock progressivo. Nos idos de 73 - após cumprir dois anos de colégio interno em uma colônia jesuíta em São José do Rio preto – voltei à Brasília e fui matriculado no Ginásio do Setor Leste aonde aprendi a matar aulas, tocar rock rural e fazer teatro. Isso mesmo: Teatro!!! Acontece que geralmente matávamos aula, comprávamos alguma bebida e íamos para a casa de algum companheiro de contravenção para degustar o etílico ouvindo rock progressivo. Acontece que rock progressivo corta qualquer papo pois exige um alto grau de concentração ou melhor desconcentração a fim de que a viagem seja “o maior barato”. Nessas horas eu sempre me sentia como o coelhinho da piada quando os irmãos o levam para a primeira transa e a coelhinha , parte fundamental desse ritual, não aparece e ele diz: “Olha só galera, só vou fuder mais meia hora e depois vou me embora”... Pois então, após alguns minutos de ummagummas, atom heart mother, Yes e Emmerson Lake & Palmer , o cenário era de um punhado de moleques e no máximo duas molecas babando, olhando pro teto , rindo e exclamando :”sôo!”. Acontece que nesse ano foi lançado o Divisor de águas do Floyd, o disco mais pop do grupo aonde eles abusaram do blues e do soul: THE DARK SIDE OF THE MOON!!!!!!!!!!!!! Esse disco serviu para atenuar a imbecilidade dessas reuniões e eu ficava tentando decorar a letra de Money não sem antes acabar com toda a fonética do idioma de Dylan Thomas..


Um abraço.
Zé Adalberto
Ah, segue o link the uma das músicas: the great gig in the sky: http://www.youtube.com/watch?v=ZAydj4OJnwQ