sexta-feira, 7 de maio de 2010

Feridas e culpas

Adolescentes costumam fazer merda, isso parece ser uma regra, um mandamento. O que lembro, às vezes, dos meus treze anos não são necessariamente coisas que me orgulhem ou me envergonhem. No mais, a memória cotidiana é sempre banal. Nosso heroísmo é, no fim das contas, enfrentar o dia a dia. Quer coisa mais trágica que o lugar-comum da existência? Mas quero falar de algo que, até hoje, me envergonha e me traz um sentimento dolorido de culpa. Em 1973, saía da Escola Industrial de Taguatinga ao meio dia e corria para o ponto de ônibus que havia em frente a Vitamina Central. Um colega de escola (que vim a reencontrar na UDF, anos depois) me fazia sempre companhia nas viagens entre a EIT e a Shis Norte, era o Austregésilo. O Austral era um sujeito de risada farta que parecia extrair sonoridades singulares ao passar pelos dentes grandes. Sujeito muito inteligente e persuasivo. Nesse dia, não sei por quantas e quês, convenceu-me a cometer uma “merda”. Coisa de adolescente, como disse no início. Esperávamos a sucata da Auto Viação São Sebastião, aquele monstrengo azul e sempre lotado, quando ele me ofereceu um alfinete e, pelo seu sorriso diabólico, pude perceber que vinha chumbo grosso. Sua idéia, exposta furtivamente entre risadas sem controle, consistia em aproveitar a costumeira lotação exagerada do coletivo, nos posicionando no fundo do veículo, para, na entrada das pessoas, espetarmos algumas pobres vítimas de nosso sadismo. Por que topei tal disparate só encontro explicação na crença de que todos somos, por princípio e natureza, maus e sádicos, cabendo às porradas do mundo o processo educativo e repressor a esses monstrinho que trazemos. Pois muito bem, o Austral se divertia espetando um e outro, que gemiam aqui, pulavam ali, comentavam “Algo me furou”, e passavam batidos e se coçando. Eu, ainda congelado de medo, apenas sorria da traquinagem do amigo. E ele: Porra, anda, você não vai espetar ninguém? Nisso, uma moça adentra as escadas do ônibus carregando seu material de escola. Enfio minha mão discretamente entre as pessoas que estão em pé ao meu redor e meto o alfinete nas partes traseiras de minha vítima. Isso me dói, em mim, até hoje. Perdoem-me a repetição, mas é só pra ressaltar como a dor é certeira. Na minha mente, a impressão que se me ficou gravada, é a de ter enterrado todo o alfinete nas nádegas da menina. Lembro com vergonha a expressão de dor que ela construiu na cara distorcida, nenhum gemido, nenhum grito, nenhum comentário. Tudo estranho, pois esperava alguma reação mais tempestiva. Seu rosto muito vermelho tentando ver quem ou o que a atingira. E eu, contendo o riso, escondido atrás dos passageiros. A viagem transcorreu em paz. Desisti de ficar espetando as pessoas. De repente, uma mulher no banco em frente ao em que estávamos, levanta-se e aponta o dedo para mim e para o Austral. No seu jeitão de italiana-cearense, ela principia um grande barraco no ônibus, que, para nossa sorte, já estava mais vazio. Berrava ela: eu vi esses dois moleques filhos da puta espetando as pessoas. Estavam com agulhas, eu vi, ela babava seu ódio. Espetaram a Noêmia (era a minha vítima), essa menina é filha da minha vizinha, é uma garota boa, ela é surda e muda, não merecia essa maldade. Terríveis vocês são. Moleques, vagabundos. O cobrador me olhava com cara de poucos amigos, as pessoas do ônibus pareciam querer nos crucificar. Me vi perdido, arrependido do que fizera. Coitada da Noêmia, surda-muda, por isso não dera um pio quando meti-lhe o alfinete. A coisa caminhava para uns bons cascudos ou linchamento (como sou exagerado, não?) quando, aproveitando o descuido do motorista que abrira a porta para a entrada de passageiros, o Austral pulou do ônibus e me deixou na fogueira. Abandonou-me às feras. Todos me olhando, fuzilando-me. Pela primeira vez na vida tive que construir um raciocínio lógico para escapar do castigo. Como meu amigo já sumira no mundo, tive a idéia de dizer: Não fui eu quem fez isso, foi meu amigo. Ele fugiu e eu fiquei porque não fiz isso. Quem não deve não teme. Minha explicação convenceu as pessoas que pararam de me olhar com raiva. Noêmia desceu algumas paradas depois, ainda passando a mão na bunda machucada, na popa em que lhe meti o alfinete. Fui pra casa com uma ferida que dói até hoje e só agora entendo os versos de Taiguara: Quem não fere, vive tranqüilo.

Piano e viola (Taiguara)
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http://www.youtube.com/watch?v=CDh4Kz4UXm4

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