terça-feira, 18 de maio de 2010

Música para acampamentos

Eu sempre fui um bicho muito esquisito, reconheço. Nasci velho e agora sinto que rejuvenesço, ou me engano? Será que sou o verdadeiro Benjamin Button? Muito além da referência cinematográfica, o que quero dizer é que, lá pelos tempos pré-históricos de minha adolescência, nunca curti essa onda de acampamento. Quando saiu o álbum da Legião, “Música para acampamento” eu refleti que, na vera, na vera, eu nunca fui de gostar da história de pegar uma barraca, juntar uns badulaques e ir pra beira de um poço azul, ficar cheio de mumunhas e corumbar a tarde toda. Nem pensar. Conto nos dedos da mão do Lula o número de vezes que encarei essa história de ir pro mato, beber umas, fumar outras e procurar disco voador entre uns pegas e outros. Minha turma vivia por Pirenópolis, Goiás Velho, Alto Paraíso, nômades felizes sorrindo para o tempo, e eu sempre preferi me agarrar a um bom livro, viajar em um bolachão duplo do Gênesis...ah, The Lamb lies down on Broadway ou delirar com Yes, Emerson, Lake & Palmer, putz, quase furei o Close to the edge e o Tarkus. Que cachoeira, que nada. Era um velho, eu sei, sou uma múmia. Mas uma vez cedi ao convite do Urias e fomos, com meu irmão, acampar em Alexânia, num clube campestre chamado pomposamente Country Club Nova Florida. Alguém conhece? Devia correr o ano da graça de 76, talvez 77, e o lugar era bem bacana, com uma estrutura legal. Levei o violão, of course my horse, e uma matula de sandubas e refris e algumas poucas cervejas. Explico: o Urias não bebia uma gota sequer de álcool. Tem coisa pior que você beber sozinho? O lugar estava meio entregue aos vagalumes e mariposas e havia muita paz. Além da nossa barraca, pintou outra no fim da tarde. Um casal gay maduro curtia a beleza da vida conjugal no campo. Talvez me perguntem por que tenho certeza que era um casal gay? Se não fosse, meu amigo, era uma amizade que matava a sede na saliva, como dizia o Cazuza. Entenda. À noite, empunhei meu amigo violão e tome canções e canções. Sò eu bebendo cerveja e esfolando os dedos em meu repertório ainda pequeno, mas já satisfatório para uma baladinha. Os dois nature boys se achegaram timidamente, se apresentaram, e começaram a cantar conosco. Lá pelas tantas, um deles disse ter visto uma estrela cadente e o outro me pediu para tocar sua canção predileta: “Não identificado”. Notei que o Urias estava meio constrangido com a presença dos dois nubentes espargindo testosterona, mas, como bom mineiro do Prata, ficou na dele, tomando seu guaraná, deixando o dia desviver lentamente. A cerveja me deixou sonolento e eu acho que também comecei a ver estrelas despencando sobre o Nova Flórida. Era hora de dormir. Tempos depois, ainda com o Urias, mas agora com a presença do Banana e do Cleber, fomos acampar em Pirenópolis, na época das Cavalhadas. Se há algo parecido com a fauna de Woodstock-69 só pode ser Pirinópolis-81. As barracas, como uma espécie de mata ciliar de material inorgânico, margeiam o pequeno rio que corta a cidade. Cabeludos, laricas, esculturas em epoxi, máscaras, violões. Acordei de ressaca e tive dificuldade para abrir a barraca, pois um maluco simplesmente capotara na porta, sobre o zíper. À noite, o perfume de Marias Joanas deixava o ar como o de um enorme templo a céu aberto, cheio de incenso. Inspirado nessa aventura escrevi uma canção que dizia:

Houve um tempo em que as estrelas apagaram a luz
Nos banhávamos em cachoeiras, todos nus.
Índios de uma tribo enfeitaçada
no silêncio de uma madrugada
sob o sarcasmo de Deus...




Cantei-a para a galera, que nao deu muita bola e nem sei se estava mesmo lá.

Na paz!

Não identificado (Gal Costa)
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http://www.youtube.com/watch?v=dMDc9gWaUiw

O cara da guitarra

Por quais raios e trovões da pá virada esse menino deu de aprender violão? Ouvi isso de um amigo mais velho, lá pelos 1970 e rapadura. Fazia coro com minha avó que via no violão, não a uva, mas um jeito de se desencaminhar uma boa alma de cristão. Dizia ela: violão não leva ninguem pra frente. Na época, andava empolgado com a possibilidade de me tornar um Jimi Hendrix candango. Adolescente sonha, mermão, é sempre assim, ou você acha que John Lennon, nos 1950, nao sonhava em ser Elvis Presley? Pois muito bem, comecei a torturar os ouvidos paternos, fraternos e não tão ternos assim com meus acordes mal executados. Meu pai me incentivou, comprando-me um horrível "Rei dos violões" marrom cor de merda, que me fazia suar nas pestanas. A primeira canção que sofreu com minha insistência foi "Mother", do John Lennon, pois era fácil, três acordes, sem contar uma sétima; tinha andamento arrastado, lento, dava pra trocar as posições na boa, do ré pro lá pro mi...bom demais. Depois, fiquei mais metido a besta, e emendei com "The house of the rising sun".Como todo debutante em violão, dedilhar a música do caos familiar dos Animals era o óbvio. Quando ja estava melhorzinho, conheci uma figura que tocava demais, pelo menos para os meus padrões rústicos, o Wenner era "o cara". Lembro de vê-lo com o violão, exibindo-se pra gente, e cá dentro eu dizia pra mim: Quando crescer quero ser que nem o Wenner. Hoje, ao vê-lo bonachão, no exercício constante de povoar a terra, já nao quero ser como ele, basta-me a sua amizade. Uma lembrança muito peculiar da figura brincalhona do Wenner se deu numa noite em que eu e meu irmão, andando pela quadra, nos deparamos com o Wenner e o Nego Celso, encostados ao muro baixo no conjunto I da 19, dedilhando "Love Hurts". Parei pra ouvi-lo tocar e notei que meu irmão estava muito desconfortável, só entao percebi o motivo. O Wenner, muito sacana, vira-se para o Celso e comenta, apontando para o meu irmao, esse franguinho aí é que anda a fim da minha irmã, Amarilis. Enquanto meu irmão amarelava e se escondia no ôco-shame absoluto, Wenner sorria, sem nem perceber que o amor fere e deixa cicatrizes e que talvez houvesse mesmo algo rolando entre aqueles dois. Nunca saberei. Se alguma coisa havia, parece que morreu ali, naquela noite, com trilha sonora e a risada escancarada do nego Celso.

Love Hurts (Nazareth)
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http://www.youtube.com/watch?v=L2BjJbKQkgc

Sexo, melancias e videocassete

O grande sonho de consumo da galera de hoje é, sem dúvidas, uma TV LCD LED FULL HD super-ultra-hiper-cool que gratina, chuleia, costura, flamba e, além de transmitir os jogos da Copa, ainda vibra, que é pra ser usada nas noites solitárias. Deixando os exageros de lado, há 25 anos atrás a bola da vez era o videocassete e foi o que adquirimos em 1985. Morávamos na 407 sul, poucos meses de casado. Era simplesmente o máximo ter um videocassete, poder locar as fitas que quisesse. Bom, pra começo de história a oferta de filmes não era lá muito animadora. Lembram que as locadoras exigiam um cadastro enorme pra você ter o direito de alugar aquelas fitas muito caras? O nosso videocassete era da Sharp, um trombolhão que brilhava no escuro e que tinha, pasmem, um controle remoto! Detalhe: com fio. Alguém se recorda de ter tido um controle remoto com fio? Isso nos permitia sentar a uma distancia de uns dois ou três metros do aparelho. Era um conforto sem igual. Pois muito bem, a história que pretendo lhes contar aconteceu naqueles dias de descoberta dessa novíssima tecnologia. Tirem as crianças da sala que não vou ocultar nadica de nada. Tínhamos alugado três fitas para o fim de semana. Lembro bem de duas delas: “Indiana Jones e os caçadores da arca perdida” e um outro filme com o singelo título, muito sugestivo por sinal, de “Oh Rebuceteio”. Meus filhos têm a cara de pau de dizer que sou um cara Sem-noção. Assim, com hífen para torná-lo um substantivo cheio de adjetivação. “Pai, você é um sem-noção”. Ao escrever esse caso, aqui e agora, começo a entender o que eles querem dizer com isso. A história foi a seguinte: convidamos dois casais de amigos para curtir a noite, tomar um vinho, beber uma cerveja, assistir os filmes. O Cesar e Liu vieram no mesmo carro com o parzinho de recém-casados Cleber e Marilene. É importante, para os fins dramáticos dessa narrativa, dizer que a Marilene nunca participou da nossa roda de amigos, nunca viu a Bandanarquia, nunca foi para bares com nenhum de nós, por ser de outra geração e, talvez, por ter outra índole. Era muitíssimo tímida, uma cristã carismática, plena de recatos. Falava baixinho como se pedisse desculpa por respirar. Para completar a platéia daquela noite de gala, eis que chegam meus pais, minha avó, meu irmão mais novo. Pronto. Assistimos as aventuras do Harrison Ford atrás da arca e depois, sem titubear, vestindo minha roupa de Super-Sem-Noção, meti o “Rebuceteio” na bocona metálica do Sharp e mandei bala. PLAY. Pense no descalabro. Um filme com um título desses só podia mesmo honrar o vocábulo esdrúxulo que encimava a capa, até discreta, da fita. Não lembro bem da história, se é que havia mesmo uma história naquela sucessão de membros e líquidos e portas e orifícios e sussurros e gemidos. Bom, creio que vocês já adentraram o clima lúbrico dessa minha lembrança. Minha vó rezava pela minha alma de um lado, mas eu percebi que, de outro lado, seu olho curtia algumas das cenas, particularmente uma em que um ator, vestido de padre, apresentava o “mistério da fé” para uma freira de boca gulosa. Meu pequeno irmão, que tinha 10 anos na época, não sabia se olhava para a TV ou se sorria de tudo aquilo. Era um sacaninha precoce. Meu pai, an old dirty man como ele só, estava adorando a sucessão de quadros que o filme oferecia, enquanto minha mãe, visivelmente irritada, resmungava pela cozinha do apartamento. Isso não é coisa para se ver com crianças, ela dizia, mas o Super-Sem-Noção se esbaldava com aquela cena de pastelão, meio Felini, meio Pasolini, não a do filme, mas a da sala do meu apartamento. A família reunida diante de imagens tão, digamos, singelas só podia ser uma cena surreal de filme italiano. Nem Almodóvar pensaria em algo igual. Na grande final da meiga película, os atores se esbaldam num banquete, divertindo-se com bananas, melancias, jacas, carnes, bebidas.

A sessão acabou, ninguém se olhava, todos com a respiração alterada, ainda sem acreditar no que se passara. No outro dia, o Cesar me disse que, na volta para casa no Guará, a Marilene, que até então se mantivera em total silêncio , comenta baixinho: Eu nunca mais vou comer melancia. É tudo verdade, meus amigos.

Je t'aime moi non plus
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http://www.youtube.com/watch?v=0uqTp71YzQw



PS: rapaziada, comentários (quaisquer que sejam) são sempre bem-vindos. Se for elogio, ótimo. Se nao, tento melhorar. Sobre o texto, sobre as músicas. E torno a repetir: se não quiser receber mais, pelo amor de Deus me avise, ok?

Bom Fim de Semana pra todo mundo, com a graça de Deus e Basquiat.

Tempos de marmita

Em 1980 ingressei na UDF para estudar Economia. Vinha do CEUB, onde tinha abandonado meu curso de Letras. Nessa época trabalhava como escriturário no ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direito Autoral. Toda manhã, sob chuva ou sol, atravessava aquele terreno onde hoje está o CONSEI, e pegava um ônibus lotadão na parada da QE 34, via W3, saltando na parada que, hoje, serve aos frequentadores do Pátio Brasil. O ECAD funcionava num Edifício do Setor Comercial Sul e minha jornada de trabalho ia das 8 às 12 e das 14 às 18h. Foram tempos de vacas magras, muito trabalho, pouca grana, salário minguado, era realmente o começo da década perdida. Como saía muito cedo pra o trabalho e raramente tinha grana para comer em restaurante, levava o rango numa marmitazinha de alumínio, quadradinha, que eu ajeitava na bolsa de couro que usava, meio riponga, e que continha também meu material da faculdade (cadernos, canetas, apostilas). O horário de almoço era uma espécie de festa, pois abríamos, todos os funcionários do ECAD, as marmitas e constatávamos a oferta diversificada de “misturas”: um trazia lingüiça; fulana, carne assada, sicrano do departamento de pessoal trouxe frango, enfim, a gente acabava transformando tudo numa espécie de grande feira do troca: te dou um bife por essa coxa aí. Me dá um pouco da batata que te dou um bocado da cenoura. Tempos remotos. O mais triste era abrir a marmita e perceber que aquela batata frita, tão bonita pela manhã, estava mais murcha que os lábios da Dercy Gonçalves. Quando saía o pagamento, podia me dar ao luxo de comer algo melhorzinho. Nessa época, havia a Casas da Banha, logo em frente ao Setor Comercial, no subsolo do que é, hoje, o Venâncio/Pátio Brasil. Tinha um restaurante por lá, fechado com vidro, ar condicionado, com uma oferta de pratos mais “aprumadinhos” que os pê-efes que ás vezes engolia ali por perto. Mas isso era evento isolado na vidazinha arrochada daquele início de década. Saía do ECAD às 18h e ia a pé para a UDF, onde estudava até as 22h e 45m e, depois de enfrentar o mesmo ônibus lotadão da manhã, chegava em casa por volta da meia-noite. Certa vez, cansadaço, sentado no ultimo banco do coletivo, justamente aquele banco que se expõe ao corredor, com uma penca de livros no colo, caí no sono. No viaduto perto da Octogonal, naquela curva fechada em direção ao SIA, um Puma GT resolveu quebrar e assustar o motorista do ônibus. Quando dei por mim, estava lá na frente, perto da roleta e do cobrador, os livros espalhados pelo chão. Para piorar a situação, minha bolsa de couro estava aberta e a minha marmita resolveu fazer-se em duas, tampa para um lado, recipiente para o outro, embaixo dos bancos. Não sei se engolia a vergonha ou se cuspia minha raiva. O fato é que cheguei, como sempre, com muita fome em casa. Minha mãe e minha vó se revezavam à minha espera, para esquentar um rango. Meia noite e eu traçando um belo de um prato de feijão com arroz, antes de capotar na cama e apagar até que o sol tornasse a nascer. Imagine essa jornada de segunda a sexta-feira. Por ora, a lembrança dessa música do Guilherme Arantes, que se me passou numa manhã nublada, quando ia para o trabalho, naqueles 1980.


A cidade e a neblina (Guilherme Arantes)
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http://www.youtube.com/watch?v=lMddnAEI1iU

Ouvindo música, jogando bola

Meu pai trabalhava nos transmissores da Radio Nacional e ia para o trabalho de bicicleta. Do Guará 2 ao acampamento da Radiobrás era um pulo pela matinha que circunda um córrego que, hoje, é o parque do Guará. Nunca gostei de bicicletas e para ser mais sincero ainda, nunca gostei de qualquer coisa que implicasse esforço físico. Adorava bater bola com a galera nos campinhos “arrança-toco” que existiam pelo Guará de lama e terra. Não era um craque, nunca fui, longe disso, mas decididamente não era tão ruim a ponto de ser convocado por Dunga. Enquanto a coisa era puro prazer, divertimento, uma peladinha sem maiores conseqüências, eu estava lá, correndo, suando a camisa, estourando os pés, na boa, feliz da vida. Mas quando alguém aventava a possibilidade de formar um time, com treino, com horário, com disciplina, hora disso, hora daquilo... batia o espírito do Adriano em mim e eu estava longe de qualquer concessão. Apesar dessa repulsa aos treinos, integrava o time que tinha, entre outros craques, o Ailton e seu irmão Marcos, dois moleques muito bons de bola; o Adão, um negão estilo Serginho Chulapa, que acreditava ser o verdadeiro imperador da grande área, mas que não passava de um perna de pau cheio de boa vontade; o José Júnior, um ponta esquerda clássico que, ao ser lançado, costumava abaixar a cabeça e disparar atrás da bola, só parando no meio do mato, bem depois do limite do campo; o Jeová, bom zagueiro que dividia comigo a função de proteger o goleiro dos atacantes adversários; Marcos, meu irmão, que sempre jogou mais bola que eu e que dava uma segurança ali pelas laterais e mesmo na cabeça de área. O Paulo Bueno, que hoje mora em São Paulo, palmeirense bom de bola e que também vestia a mesma camisa. O Betão, um negão 2 x 2, que nos dava um certo alívio para o caso de explodir uma conflito mais corpo a corpo, se é que me entendem. E esse conflito surgiu um dia quando fomos convidados para jogar contra o pessoal da atual Vila Telebrasília. Na época aquilo não era ainda a vila que vemos hoje, urbanizada, casas de alvenaria, bonita, mas uma espécie de invasão chique, no final da asa sul. Havia um campo de terra, muito melhor que os nossos e que, hoje, para quem passa por ali e vê, é um verdadeiro show de gramado iluminado. A partida correu tranquilamente e a molecada da Vila era pior e menor que a gente. O resultado não poderia ser outro: goleada na rapaziada de lá. O que ninguém esperava era a chuva de pedras que, de repente, enquanto nos preparávamos para ir embora, começou a cair. Os maus perdedores tinham também, para nossa sorte, péssima mira, e as pedras não chegaram a atingir ninguém, mas foram o suficiente para nos botar para correr de lá. Não me recordo quem nos tinha dado a carona para o jogo, a mim e a meu irmão, mas lembro que no toca-fitas do carro tocava uma velha canção de Michael Jackson.


In our small world (Michael Jackson)
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http://www.youtube.com/watch?v=dh0CWxtMZag

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Questão de ordem

Em janeiro de 1978 eu deixei o Banco do Brasil. Era a regra: os menores deveriam deixar o Banco sessenta dias antes de completarem dezoito anos. Isso por causa de alistamente militar, eu presumia. Foi um dia triste, chovia lá fora, mas acredito que chovia muito mais em mim, pois eu realmente gostava de trabalhar no Banco do Brasil. Como fizera nos últimos anos, saí do Banco e fui caminhando para a Rodoviária. O meu trajeto incluía um atalho pelo Touring, quando conseguia driblar o segurança e descer as escadas para chegar a plataforma inferior da rodoviária. Por estar meio down e cheio de vazio, mudei meu itinerário e resolvi dar uma passada no Conjunto Nacional, ver uns tênis, uns discos, talvez uns livros. Subi as escadas rolantes, esbarrei no formigueiro de gente e mergulhei no centro comercial. Como menor estagiário do Banco, devo reconhecer, deixei a minha infância para trás e, bem ou mal, adentrei o mundo adulto. Foram quase três anos de trabalho, de construção de amigos, de muitos bons momentos e pouquíssimos dissabores. Trabalhava na Agência Central, atrás da bateria de caixas. O horário de trabalho era das 13 às 18, mas invariavelmente saía depois do expediente. Nessas ocasiões, os amigos ficavam em bando esperando que eu fechasse o barraco para ir com eles. Naquele dia de janeiro, sozinho (o que por si só era muito raro, uma vez que nunca estava só), andei pelo Conjunto Nacional com a cabeça no futuro incerto. Juntara uma graninha e decidira viajar, ainda naquele mês, para João Pessoa, que eu ainda não conhecia. Entrei na Discodil e fiquei fuçando uns bolachões. Sempre gostei de coletâneas do tipo The greatest hits of Fulano ou The Best of Sicrano e uma séria em particular sempre me seduziu: “A arte de”. A primeira que adquiri foi a de Caetano, depois a do Chico e uma do Elton John. Recentemente tinha comprado a Arte do Tim Maia. Peguei um exemplar da Arte de Gilberto Gil e fiquei ouvindo na cabine de som da discoteca. Havia, naquele tempo, uma coleção da Editora Abril que circulava pelas bancas, eram pequenos discos que vinham numa revista de Mestres da MPB. Eu tinha o exemplar do Gil e adorava uma música em especial: Questão de ordem (vai em anexo). Na cabine, ouvindo Gil cantar Marginalia 2, fui me empolgando com aquilo e a grana no meu bolso foi pedindo pra dormir na registradora da loja. Não deu outra, comprei o bolachão verde do Gil e, por alguns instantes, desliguei-me do futuro. Era um rapaz de 17 anos, era um rapaz de 17 anos...

Questão de ordem (Gilberto Gil)
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http://www.youtube.com/watch?v=BNeALhaMSjQ

Clara Crocodilo fugiu

Foi uma dificuldade convencer os amigos a irem comigo ao show na Sala Funarte. Ninguém gostava da música do sujeito. "Quem quiser que ache isso bonito" diziam alguns mais objetivos. "Isso não é música" decretavam outros, mas eu adorava aquele estranhamento provocado pelos metais e piano, aquela harmonia com cara de caos, a melodia aos pulos e paradas, as vozes muito agudas de Vânia Bastos e Tetê Spindola em gritante contraste com a voz de Arrigo na gutural narração da história de Clara Crocodilo. Eu comprara meu bolachão maravilhoso com a ajuda de uma colega de São Paulo. Ouvi-lo era uma tortura para os mais chegados e, nesse sentido, eu era um sádico por natureza. Nessa época andava lendo muita poesia, umas coisinhas russas (Maiacovski, principalmente) e inglesas (T.S.Elliot, Ezra Pound e, especialmente, Allen Ginsberg - me refiro à língua inglesa). Os irmãos Campos, mais o Pignatari, também habitavam meu universo estético naquele início dos 1980 e eu enxergava tudo isso na música de Arrigo Barnabé. Uma descoberta: a música popular pode ir muito além do feijãozinho diário. A capa do Clara Crocodilo é um delírio com aqueles olhões enormes, simplesmente fantástica, um primor de trabalho gráfico (ver anexo). Uma das grandes perdas provenientes da tecnologia do CD foi justamente as capas dos discos, nunca mais teremos o prazer de um trabalho gráfico como o do Physical Graffitti ou qualquer dos discos do Pink Floyd. Azar o nosso. O show foi uma maravilha, a platéia mínima, o entusiasmo máximo. Uma das cordas do baixo de Otávio Fialho arrebentou-se no meio de “Diversões eletrônicas”, mas ele levou o show na maior manha e competência. Ao final do espetáculo fiquei enrolando na esperança de ver o Arrigo de perto, de falar com ele. Na timidez peculiar ao fã, ainda comentei com o Josélia, o Cesar e a Liu que “a gente bem que podia chamar o Arrigo pra tomar umas”. Desnecessário acrescentar que ninguém teve coragem de ir ter com o geniozinho do mal da música brasileira dos 1980. Ainda o vi, parado, sozinho, num canto da sala Funarte, mas mesmo assim não conseguir coragem para falar com ele. No dia seguinte, numa entrevista do Arrigo para um jornal local, além dos comentário de praxe sobre a cidade, sua arquitetura, luzes, etc., o Arrigo comentou: A cidade me pareceu meio fria, estava a fim de sair pra beber com as pessoas, mas não pintou nenhuma oportunidade. Juro, meus amigos, ele realmente declarou isso. Só de raiva, botei o Clara pra rodar. Anos depois, em 1997, reencontrei o Arrigo num show solo no HOtel Tambaú, em João Pessoa. Estava bêbado, tropeçando nas teclas do piano e nas palavras. Clara Crocodilo fugiu, Clara Crocodilo escapuliu.

Sabor de veneno (Arrigo Barnabé)
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http://www.youtube.com/watch?v=7mfYp7JGNNE